Aldeia de Leiria cumpre tradição e volta a enterrar o Bacalhau
A poucos quilómetros de Leiria, na aldeia do Soutocico, a população está empenhada em trazer à rua mais uma edição do “Enterro do Bacalhau”. De cariz marcadamente pagão, a peça percorre as ruas da aldeia na noite de Sábado de Pascoela, o sábado seguinte à Pascoa, e termina numa monumental ceia de bacalhau.
"O elenco é de luxo. Bispo, padres, sacristão, freiras, carpideiras, cangalheiros, coveiro, pescadores, varinas, padeiros, músicos, tochas, entre outros, compõem um grupo de 300 figurantes amadores, seguido de perto por uma multidão de espectadores, também convidada a participar na encenação", revela a Organização da iniciativa, o Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico.
Espetadores, figurantes e staff são unânimes: "Por mais vezes que participemos, há sempre novidades que justificam o regresso, ou não fosse a atualidade sócio-política uma grande fonte de inspiração para os textos declamados e cantados", explica Sandrina Faustino, responsável pela promoção e divulgação, membro da Comissão Organizadora do Enterro do Bacalhau.
Representado pela primeira vez em 1938, o Enterro do Bacalhau depressa se tornou o ex libris histórico-cultural da aldeia de Soutocico, ainda que tenha sido proibido pelo regime de Salazar. "Aconteceu abril e o Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico decidiu reeditar o evento", sintetiza Sandrina Faustino.
O Enterro do Bacalhau voltou às ruas em 1976 e repetiu-se em 1977, 1980, 1983, 1992, 1996, 2000, 2004, 2008 e 2012. Realizar-se-á de novo este ano, a 2 de abril.
O cortejo percorre as principais ruas da aldeia ao som da marcha fúnebre de Chopin, de cânticos por padres, freiras, varinas e pescadores e com o choro das carpideiras à mistura. Ao longo do percurso, realizam-se três paragens, para declamação de sermões. A peça termina com o "Julgamento do Judas", com a declamação do sermão e a tradicional "Queima do Judas".
Uma aldeia de luto
Da inteira responsabilidade do Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico (C.R.D.S), a organização e promoção do Enterro do Bacalhau envolve toda a população da aldeia. Os preparativos deste ano começaram em novembro de 2015. Desde então, as comissões não param. Atualizam-se textos, ensaiam-se cânticos e sermões, procuram-se patrocinadores, acertam-se trajes e acessórios.
"Só assim se consegue todos os quatro anos trazer à rua um imponente espetáculo teatral, absolutamente amador", sublinha a Organização.
V Festival do Bacalhau, às 17:00
A generosidade de mais de duas dezenas de voluntários da aldeia e de grandes patrocínios nacionais permite transformar o Pavilhão do C.R.D.S. num restaurante onde o bacalhau é rei. Bacalhau Assado; Pastéis de Bacalhau; Caras de Cu, uma especialidade de Soutocico; e Pataniscas de Bacalhau são alguns dos pratos, servidos com batata e grão, migas ou sarrabulho. O sucesso da iniciativa em anos anteriores motiva esta quinta edição.
Teatro de Rua com história, às 21:00
O Clube Recreativo e Desportivo do Soutocico contextualiza a tradição e o guião do teatro de rua desta forma: "O Enterro do Bacalhau parece remontar ao século XVI, durante o movimento contra-reforma. Em tempos de uma inquisição aplicada em nome de uma Igreja poderosa e autoritária surge a proibição do consumo total da carne e outros prazeres durante o período da Quaresma. Mas, havia exceções: todos aqueles que comprassem uma bula, um indulto que servia os mais abastados, que o podiam pagar, enquanto que os desfavorecidos, a grande maioria, teriam de se socorrer do peixe na sua alimentação durante 40 dias. O peixe mais acessível era o bacalhau que, cozinhado de 1001 maneiras se implantou nos lares dos pobres. Terminado o período da Quaresma foi denunciado e julgado por um tribunal fantoche que o condenou à morte, por inveja da sua popularidade. A traição do advogado de acusação, o traidor "Filho da Maria Malvada", enraiveceu toda aquela gente simples que, durante o cortejo, pede a sua cabeça, para que se faça justiça ao bacalhau. Terminado o cortejo fúnebre e enterro do fiel amigo, é tradição do Soutocico a queima do Judas. Logo que o bacalhau desce à cova, segue-se um sermão ao Judas e a queima do Judas entre alaridos e gáudio da multidão".
1 de março de 2016